Saída Fiscal

Quatro esclarecimentos importantes sobre a saída fiscal do Brasil

Recentemente, o mundo das redes sociais recebeu uma enxurrada de informações sobre a saída fiscal do Brasil. Várias pessoas divulgaram que a receita federal brasileira iria “perseguir”, a partir de 2026, os contribuintes que não realizaram esse procedimento, fato já reconhecido como desinformação pela própria RFB. Evidentemente, pois a RFB não tem interesse algum em “perseguir” contribuintes que se declaram formalmente residentes para considerá-los como não residentes, pois isso lhe retira o direito de ao menos discutir a possibilidade de tributação universal da renda. A RFB tem interesse em desvendar a situação contrária: contribuintes que se declararam não-residentes e que são, de fato, residentes no Brasil. 

Pois bem, inicialmente, vale lembrar que a existência de dupla residência fiscal não é uma irregularidade ou um “crime fiscal”. A dupla residência é um fato que decorre da análise de fatos e circunstâncias definidos pelas legislações tributárias dos países. Aliás, é para tratar desse fenômeno que existem os tratados para evitar a bitributação, os quais irão cuidar também da possível bitributação quando não há dupla residência, mas há tributação (geralmente na fonte) em outro país no qual o contribuinte não é residente.

Quando há dupla residência, o tratado irá definir, para efeitos de aplicação do tratado (pois os tratados jamais interferem na caracterização de residência fiscal, algo definido sempre pela legislação doméstica dos países — em outras palavras, o tratado jamais poderá dizer se alguém é ou não residente conforme legislação doméstica), qual será o país de residência (novamente, “residência” para exclusivo fim de aplicação do tratado).

Por que essa definição é necessária? Para alocação de competência tributária (definição de qual país pode tributar) e para a atribuição do direito de tributar a renda universal, o que também ocasiona a obrigação de conceder crédito ou isenção (artigo 23 do modelo OCDE). Ou seja, o país de residência, para fins do tratado, será o país que irá tributar a renda universal e que também irá conceder o relief para evitar a dupla tributação. 

E como saber qual é o país de residência para aplicação do tratado quando há dupla residência estabelecida pelas legislações domésticas? Pela regra de desempate do artigo 4 do modelo OCDE.

No caso do tratado Brasil – Países Baixos, por exemplo, o artigo 4.2 irá definir essa regra de desempate (aqui, o foco é na residência de uma pessoa física): 

2 – Quando, por força do que dispõe o parágrafo 1, uma pessoa física for residente de ambos os Estados Contratantes, sua situação será assim determinada;

  1. a) será considerada residente do Estado em que disponha de moradia permanente; se dispuser de moradia permanente em ambos os Estados, será considerada residente do Estado com o qual suas relações pessoais e econômicas forem mais estreitas (centro de interesse vitais);
  2. b) se o Estado no qual tiver o seu centro de interesses vitais não puder ser determinado, ou se não dispuser de moradia permanente em um ou outro Estado, será considerada residente do Estado em que permanecer habitualmente;
  3. c) se permanecer habitualmente em ambos os Estados, ou se não permanecer habitualmente em nenhum deles será considerado residente do Estado de que for nacional.
  4. d) se for de nacional, de ambos os Estados ou se não o for de nenhum deles, as autoridades competentes dos Estados Contratantes resolverão a questão de comum acordo.

 

Ou seja, o critério de desempate segue uma ordem: primeiro, moradia permanente. Segundo, centro de interesses vitais. Terceiro, permanência habitual. Quarto, nacionalidade. E se não houver possibilidade de aplicar nenhum desses critérios, então a questão teria que ser resolvida pelo sempre complicado MAP – mutual agreement procedure.

Portanto, o primeiro ponto que deve ser bem compreendido: a não realização da saída fiscal do Brasil não concede automaticamente à Receita Federal Brasileira o direito de tributar a renda universal do contribuinte se a residência para fins do tratado não for no Brasil, conforme a regra de desempate do artigo 4 acima mencionado. 

Não obstante, destaco: discussão de regras de tributação internacional com a Receita Federal brasileira é algo tortuoso, pois infelizmente o Brasil, por (ainda) não estar inserido no ordenamento da OCDE (e, dentre outros motivos, por não ter, afinal, relevante atuação na definição das regras de governança internacional), não tem a escorreita compreensão das regras aplicáveis. Mesmo o Poder Judiciário brasileiro (formado pelos seus magistrados), apesar de recente evolução, tem conhecimento questionável sobre o tema, como pudemos ver nas inúmeras decisões judiciais sobre a aplicação do artigo 7 dos tratados. 

A declaração da saída fiscal certamente evitaria essa discussão de “residência para fins do tratado” (e consequente alocação de direitos tributários) perante a Receita Federal e o Poder Judiciário brasileiro. 

A declaração da saída fiscal iria também evitar a aplicação dos dispositivos da Lei 14.754/2023.

Mas, afinal, a saída fiscal é obrigatória ou não? Aqui vai o segundo ponto a ser compreendido: a realização da comunicação de saída e da declaração de saída é obrigação do contribuinte, nos termos da IN SRF 208 de 27/09/2002, desde que a saída ocorra com ânimo definitivo (em outras palavras, sem intenção de retornar num momento definido no futuro) ou com ânimo temporário (mais de doze meses – artigo 11, I da IN SRF 208/2002 – mas com certa intenção de retornar em algum momento no futuro). Quando essas comunicações são devidas? Para a declaração, até o último dia do mês de abril do ano seguinte. Para a comunicação, até o último dia do mês de fevereiro do ano seguinte.

Há que se reconhecer que o sistema adotado pelo Brasil gera muita confusão de entendimento. Ora, se a comunicação e a declaração são devidas em ambos os casos (saída definitiva ou temporária), para que fazer a distinção? Melhor seria estabelecer que a apresentação da saída fiscal é devida quando há simples transferência de residência (com ânimo definitivo ou não, até porque o conceito “definitivo” é difícil de se estabelecer, porque infelizmente não conseguimos prever o futuro), essa entendida como o país de moradia. Nesse caso, no retorno ao Brasil, o contribuinte informaria a RFB sobre a data do seu retorno. Esse é o sistema adotado na Holanda (que não envolve “intenção” do contribuinte para o aangifteformulier M, somente mudança de residência, critério objetivo, apesar da subjetividade inerente à definição de residência tributária no país), muito mais pragmático e eficiente (características, aliás, que definem muito bem o sistema tributário neerlandês).

Todavia, o critério para definição de residência no Brasil não é a ausência da comunicação de saída ou da declaração de saída. Essas são meras obrigações acessórias e que geram presunção relativa (não presunção absoluta) quanto à residência. O critério de residência fiscal é a efetiva residência no Brasil “em caráter permanente” ou com “ânimo definitivo” (dentre outros critérios para quem trabalha para o Estado brasileiro e para quem tem visto temporário), como estabelece o artigo 2º I e IV da IN SRF 208/2002. Óbvio, senão bastaria a alguém residente no Brasil apresentar a “declaração de saída” e ser não-residente para todos os efeitos, sem possibilidade de revisão. 

Nesse sentido, a própria IN SRF 208/2002 (artigo 3º, V) estabelece a regra de que a ausência de comunicação de saída para quem se retira do território nacional em caráter permanente não torna o contribuinte um “eterno” residente fiscal no Brasil, mas somente pelos primeiro doze meses, contados da efetiva saída (regra diferente aplica-se para transferência para paraísos fiscais, vide artigo 27 da Lei 12.249/2010). Vale acessar também o site da Receita Federal. 

Em resumo: o que define a residência tributária é a efetiva residência no Brasil, não a obrigação acessória de comunicação ou declaração de saída. Será não-residente quem preenche umas das duas condições: apresentação da comunicação/declaração de saída ou o transcurso de mais de 12 meses no exterior. 

E como fica o critério dos 184 dias? Terceiro ponto para esclarecimento: o critério de 184 dias vale somente para pessoas com visto temporário no Brasil, nos termos do artigo 2º, III, b), 2 e artigo 3º, IV, b) da IN SRF 208/2002, o que se aplica geralmente para estrangeiros que vem trabalhar no Brasil. O critério de residência para todas as demais pessoas é a residência no Brasil em caráter permanente ou como ânimo definitivo, como já exposto, critério absolutamente subjetivo. Observa o Professor da USP, Luís Eduardo Schoueri, “Daí verificar-se que, no que se refere aos brasileiros, o status de residente decorre exclusivamente do aspecto subjetivo. Ou seja: não se dá a atenção para o número de dias de permanência no Brasil; se o indivíduo tem nacionalidade brasileira, é sua intenção de retornar, i.e., de aqui fixar residência, o único critério para a tributação como residente no País.” Consequentemente, não há critério de número de dias para configuração da residência tributária no Brasil para brasileiros. Por que as pessoas acham que 184 dias é parâmetro para residência fiscal? Porque alguns países utilizam esse critério objetivo (Irlanda, por exemplo), provavelmente porque esse também é uma das condições para tributação da renda de emprego, nos termos do artigo 15 (que menciona na realidade 183 dias) do modelo de tratado tributário da OCDE, adotado pela maioria dos países.

O mesmo parâmetro vale para o brasileiro que deu a saída fiscal: o retorno ao Brasil por um período determinado de tempo pode ou não caracterizar reaquisição da residência fiscal, dependendo da intenção, não do critério de dias. Um não-residente brasileiro que volta para o país para passar férias ou para ficar com a família ou amigos de forma temporária, com data pré-definida de retorno ao exterior, não deverá ser considerado como residente fiscal no Brasil, independentemente do número de dias. Na pior das hipóteses, a definição será definida pela regra de desempate do artigo 4 dos tratados da OCDE. 

Outro aspecto que merece esclarecimento: exceto no caso de mudança para um país com tributação favorecida ou regime fiscal privilegiado (os chamados paraísos fiscais, vide artigo 27 da Lei 12.249/2010 e IN RFB 1.037/2010), a não-residência fiscal no Brasil não depende do reconhecimento da residência fiscal em outro país. Observei alguns “consultores” nas redes sociais afirmando que um brasileiro que sai do país com ânimo definitivo só deve dar a saída fiscal no Brasil após reconhecimento da residência fiscal em outro país (Portugal, por exemplo). Isso não existe, pois não há nenhuma base normativa para esse entendimento (exceto no que se refere aos paraísos fiscais, como já mencionado). 

Quarto ponto: qual é a penalidade para a ausência de comunicação de saída e da declaração da saída fiscal? A resposta está no artigo 13 da IN RFB 208/2002 (os valores devem ser atualizados): 

  • Se houver imposto devido: multa de um por cento ao mês ou fração de atraso calculada sobre o valor do imposto devido, observados os limites mínimo de R$ 165,74 (cento e sessenta e cinco reais e setenta e quatro centavos) e máximo de vinte por cento do valor do imposto devido.    
  • Se não existir imposto devido: multa de R$ 165,74 (cento e sessenta e cinco reais e setenta e quatro centavos).

Portanto, a minha sugestão é que o contribuinte analise quatro aspectos antes de realizar a saída fiscal: 

 

1) Se está disposto a “correr o risco” (porque a Receita Federal brasileira muito dificilmente irá dedicar esforços para considerar uma pessoa como não residente fiscal no Brasil) de ser obrigado a pagar a multa acima descrita; 

2) Se a saída fiscal ocasionaria maior ou menor carga tributária — e isso depende da natureza dos ativos no Brasil. 

3) Burocracia (nomeação de procurador por exigência da instituição financeira por exemplo, ou limites de movimentação) e custos envolvidos quanto à manutenção de conta de não-residente. 

4) Para os investidores, a carteira de investimento oferecida para os não residentes. 

 

Leiden, 26 Novembro de 2025. 

 

Jefferson Ramos Brandão
NOvA (the Netherlands) A-nummer A39412  |  OA (Portugal) 68763P  |  OAB/PR (Brazil) 27.617
Adv. LLM International Tax Center – Leiden University
LLM Erasums University Rotterdam
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